6 passos para requalificar o transporte público em Ilhéus
Resolução de problemas estruturais é fundamental para garantir qualidade e sustentabilidade ao sistema de ônibus coletivo do município
Por Jonathan Souza
O ditado popular “não há nada tão ruim que não possa piorar” parece descrever bem o que vem acontecendo com o transporte público em Ilhéus. A pandemia do novo coronavírus, decretada em março de 2020 pela Organização Mundial da Saúde (OMS), aprofundou velhos problemas de qualidade e demanda do sistema de ônibus coletivo. Desde lá, sem uma reestruturação desse modelo de transporte, a população segue penando para se deslocar no município devido à redução de linhas e horários, sobretudo no período noturno e na zona rural.
A forma como a prefeitura lidou com os desafios enfrentados pelo transporte público durante a pandemia mostrou sua morosidade e inabilidade com o tema. Desde o início da crise, a gestão municipal se esquivou de qualquer debate com a sociedade civil, os especialistas e a Câmara de Vereadores e passou a costurar um acordo milionário de auxílio às empresas de ônibus, cujo benefício para a população (sendo irônico) foi manter as viagens com horários reduzidos e a autorização para o reajuste das passagens.
A abertura de uma Comissão Especial de Inquérito (CEI) na Câmara de Vereadores para investigar o tal acordo em outubro de 2021 foi a última oportunidade de discutir seriamente os problemas do transporte coletivo, mas foi logo enterrada pela mesma Câmara com “aplausos” do governo.
É claro que a queda dos recursos de custeio é um dos principais problemas deste meio de deslocamento, mas é preciso cuidar para que recursos públicos não sejam absorvidos pelas concessionárias sem que isso se reverta na melhoria da eficiência e da qualidade do serviço. Por isso, aponto abaixo 6 passos para uma requalificação do transporte público em Ilhéus de forma estrutural e não por meio de remendos, como temos visto por aí. Advirto que qualquer ação deve estar ancorada na elaboração de um Plano Municipal de Mobilidade Urbana.
- Nova licitação com contratos mais curtos
A base dos contratos de concessão das empresas de ônibus coletivo de Ilhéus preveem prazos de vigência de cinco anos, renováveis por mais cinco períodos de cinco anos, o que pode estender a exploração do serviço de transporte pela São Miguel e Viametro por um período de até 25 anos.
A renovação dos contratos, contudo, não é uma obrigatoriedade da prefeitura, podendo não ser realizada caso as operadoras descumpram cláusulas contratuais ou normais legais. Entretanto, o que tem sido visto até aqui são as gestões municipais optando pelo caminho mais simples, garantindo sempre a manutenção das mesmas empresas de ônibus, apesar das graves denúncias apresentadas pela população em relação ao descumprimento de termos contratuais e da legislação.
A extensão desses contratos por um longo período de tempo acaba tornando o Município e a população reféns do domínio econômico de poucas empresas, retardando a possibilidade de novos processos de concorrência e de inovação tecnológica do transporte coletivo. Além disso, o fato dos contratos serem muito antigos tornam os mesmos obsoletos em vários aspectos, tendo em vista que as características de linhas, horários, tipos de veículos e demanda de passageiros previstas na contratação já não correspondem à realidade atual.
Direitos assegurados através de normas legais, como a garantia de acessibilidade em 100% da frota de veículos, a meia passagem para estudantes do município, além de inúmeras outras regras dispostas em decretos, leis e acordos também não estão presentes nos contratos, criando uma colcha de retalhos legal que dificulta o entendimento, cumprimento e fiscalização da operação do serviço de ônibus coletivo no município.
A realização de uma nova licitação com contratos mais curtos pode trazer estudos de demanda mais atualizados e inovações, que permitam maior concorrência, melhor previsibilidade de custos e de gestão de riscos, linhas, frotas e serviços desenhados de forma mais eficiente, além de ferramentas mais atualizadas de gestão e fiscalização do sistema pelo poder público. Os novos contratos ainda podem estar mais adaptados a lidar com novas tendências e mudanças bruscas, como novas pandemias, dividindo custos e responsabilidades entre as partes em caso de queda do número de passageiros.
2. Serviços e veículos de acordo com a demanda
Planejar o transporte público requer um trabalho minucioso de estudo de demanda e das características das vias urbanas para manter a melhor relação custo-benefício para empresas de ônibus e os passageiros. Nesse sentido, linhas expressas no sentido sul-norte (Zona Sul x Iguape, via Ponte Jorge Amado), norte-oeste (Iguape x UESC, via Av. Esperança) e sul-oeste (Zona Sul x UESC, via Av. Princesa Isabel), sem passar pelo Terminal Central, podem ser criadas e funcionar apenas em horários de pico a fim de agilizar o deslocamento de trabalhadores e estudantes no início da manhã e no fim da tarde.
Além disso, linhas noturnas podem percorrer trajetos diferentes e terem tarifa mais acessível com o objetivo de garantir uma melhor relação custo x oferta. Na conexão entre o Aeroporto Jorge Amado, rodoviária e estabelecimentos de hospedagem nas zonas sul e norte, podem ser oferecidos serviços especiais com ônibus com poltronas mais confortáveis e bagageiro a um custo mais caro que as linhas comuns, mas não maior do que táxis e carros por aplicativo.
Para a zona rural, poderia ser estudado se valeria à pena trocar os ônibus urbanos por ônibus rodoviários com bagageiro, cujas peças internas são mais resistentes às condições ruins de trafegabilidade das estradas vicinais. Por fim, o acesso aos morros poderia ser realizado através de vans, com integração tarifária em terminais de transbordo, podendo ser operadas de forma individual por permissionários e não mais pelas empresas de ônibus.
É preciso lembrar, contudo, que o poder público também tem responsabilidade na melhoria da eficiência do transporte coletivo através da manutenção constante das vias urbanas e rurais e na criação de faixas exclusivas de ônibus, garantindo mais agilidade e segurança para os passageiros.
3. Integração de linhas e modais
A implementação de integração no sistema de transporte público coletivo em Ilhéus é uma necessidade urgente para garantir equidade no acesso à cidade para toda a população, reduzindo custos, principalmente, para quem mora nos distritos e povoados. Além disso, um bom sistema de integração pode reduzir custos operacionais das empresas, organizando melhor as viagens e reduzindo linhas sobrepostas.
No entanto, cabe destacar que um processo de integração mal feito pode levar por água abaixo toda boa intenção de quem o planeja. Em 2019, a Prefeitura de Ilhéus e as empresas Viametro e São Miguel apresentaram um plano que tinha como foco o transbordo dos passageiros das linhas zona norte-zona sul no Terminal Urbano Central. O problema é que esse terminal não está estruturado para receber a quantidade de veículos e de pessoas que passariam a utilizá-lo como ponto de integração, o que poderia gerar vários transtornos.
O modelo ainda excluía da integração as linhas interdistritais e desconsiderava as viagens feitas pelos passageiros entre localidades da zona sul (Hernani Sá x Olivença, por exemplo) ou entre bairros e distritos da zona norte e zona oeste (Iguape x UESC, por exemplo), que não passam pelo centro da cidade.
Desse modo, um bom projeto de integração deve não só reduzir o custo do usuário do transporte, mas também gerar um transbordo entre ônibus de forma rápida, acessível e segura para os passageiros, reduzindo seu tempo de viagem. Para isso, o transbordo deve ser possível em todos os pontos de ônibus a partir de um prazo de tempo pré-estabelecido e novos terminais de integração poderiam ser criados com estrutura adequada para essa troca de veículos. Bicicletários e estações de aluguel de bicicletas poderiam também estar presentes nos terminais e principais pontos de ônibus, gerando maior capilaridade nos deslocamentos.
4. Transparência da bilhetagem eletrônica
Modelo majoritário nos contratos de transporte público da maioria das cidades brasileiras, a operação da bilhetagem eletrônica pelas empresas de ônibus é um obstáculo para a transparência dos custos e da arrecadação tarifária, o que, consequentemente, dificulta o monitoramento pela sociedade civil e a gestão e fiscalização do serviço pelo poder público. Na maioria das vezes, o acesso às planilhas de custo ocorre apenas quando as empresas solicitam aumento de tarifa, restando ao Município, muitas vezes, apenas confiar nos índices e cálculos das operadoras do transporte público.
Para romper com a dependência das concessionárias de ônibus na obtenção de informações, algumas administrações municipais têm optado por assumir a gestão da bilhetagem, como é o caso de São Paulo, ou fazer a concessão desse serviço para outras empresas, iniciativa que está em fase de licitação em São José dos Campos-SP e no Rio de Janeiro.
Com esse modelo de divisão de responsabilidades, o Município passa a ter controle total do fluxo de caixa da bilhetagem do transporte público, onde toda a arrecadação das passagens é transferida para uma conta própria administrada por uma câmara de compensação tarifária. Em seguida, este órgão criado na estrutura municipal repassa os recursos para as empresas de ônibus de acordo com os custos de operação de cada uma.
Um novo sistema de bilhetagem pode ainda incluir o monitoramento em tempo real da localização dos veículos por GPS, além da criação de bilhetes de uso fora do horário de pico, semanal, mensal ou de integração entre linhas com preços diferenciados. Novas tecnologias de pagamento também podem ser implementadas, como QR Code, carteira digital, cartão de débito/crédito, Pix, entre outros. Por fim, todas as informações obtidas, à exceção dos dados pessoais dos usuários, passam a ser disponibilizadas não só à gestão municipal, mas também para a população, tornando o processo mais claro e transparente.
5. Remuneração baseada em indicadores
O modelo atual de remuneração das empresas de ônibus é baseado no custo por passageiro transportado, calculado com base em índices de preço dos principais insumos do transporte público, como veículos, combustível (diesel), pneus, lubrificantes, além do pagamento do salário dos funcionários e o lucro dos empresários. Essa fórmula, no entanto, acaba por estimular a superlotação, pois, para garantirem um maior lucro e reduzirem seus custos, as operadoras acabam por transportar um maior número de passageiros em um mesmo veículo.
Para garantir uma remuneração mais justa e com garantias de qualidade e eficiência para o usuário do transporte público, algumas cidades têm optado por remunerar as empresas pelo custo do quilômetro rodado e não mais pelo número de passageiros, assim as concessionárias passam a colocar mais ônibus em circulação a fim de aumentarem seus lucros.
Outra inovação nesse sentido é atrelar o pagamento das empresas a índices de qualidade, como cumprimento de horários, satisfação dos passageiros, entre outros, onde a remuneração pode ser deduzida na medida em que as operadoras descumpram tais indicadores. A capital paulista já inclui reclamações dos clientes em seu Índice de Qualidade do Transporte (IQT). O município do Rio de Janeiro também incluiu critérios de avaliação do serviço em sua nova licitação do BRT (Bus Rapid Transit).
6. Novas receitas de financiamento
Um dos problemas centrais do transporte público é o fato de, na maior parte das cidades brasileiras, o serviço ser mantido principalmente pela cobrança da tarifa, o que transfere a maior parte do custo para os usuários, que, em sua maioria, são pessoas de baixa renda. Com a queda do número de passageiros pagantes, ampliada desde o início da pandemia da Covid-19, e o aumento constante dos principais custos de operação, como diesel e pagamentos de salários, esse modelo tem se mostrado insustentável.
Para manter a sobrevivência desse importante meio de transporte, algumas cidades brasileiras têm optado por direcionar subsídios diretos do orçamento público para as operadoras de ônibus. Outras possibilidades de diversificação de receitas são a concessão de espaços publicitários e comerciais em abrigos e terminais de ônibus, além de cobrança pelas externalidades negativas do uso do automóvel, como o estacionamento rotativo (zona azul), onde tais recursos passam a ser direcionados para auxiliar no custeio do serviço de ônibus.
Além dessas alternativas, algumas administrações municipais no Brasil e na América Latina têm decidido adquirir ou alugar a frota dos ônibus coletivos com recursos próprios e, em alguns casos, até disponibilizar terrenos públicos para a instalação das garagens, deixando para as empresas de ônibus apenas a operação do transporte público, o que pode atrair uma maior concorrência e reduzir custos.
Por outro lado, instituições da sociedade civil e associações públicas e privadas têm defendido a implementação de uma política nacional de financiamento do transporte público, através de um fundo com recursos dos governos federal, estaduais e municipais, que servirá para subsidiar a operação de sistemas de ônibus, metrôs, trens e barcas em grandes cidades e regiões metropolitanas.
Jonathan Souza é comunicador social, jornalista, consultor do Instituto Nossa Ilhéus e membro do Conselho Municipal da Cidade de Ilhéus.